ESTRELA NO PALCO OU NA VIDA?
Quando eu tinha dezesseis anos, um rapaz me perguntou qual era meu sonho. E eu respondi com toda a honestidade de meu coração de menina: uma casinha no pé da serra, uma rede armada, meu amorzinho do lado e a felicidade.
Passados quinze anos, toda vez que volto à fazenda, o antigo sonho se renova. Mas confunde-se com o atual. E eu fico a me perguntar onde exatamente eu perdi este encantamento, se eu perdi mesmo ou se roubaram de mim. E se roubaram, quem se atreveu? Em que momento, se eu nem percebi? Embora digam que é assim que nos roubam os ideais mais puros: enquanto dormimos e aos poucos, para não termos tempo de dar por isso. Mas eu acho mesmo que isso se dá às nossas vistas mesmo, quando, de olhos bem abertos, permitimo-nos ser invadidos por essas ondas modernas que prometem felicidade rápida e fácil. De repente, já somos outros. Já não nos reconhecemos no espelho. Já não sorrimos igual, nem pelas mesmas coisas tolas. De repente os sonhos crescem maiores que nós mesmos. De um jeito que nem sabemos se são sonhos nossos ou só ideais produzidos por um tempo que nos exige a todo instante sucesso. E quando volto à fazenda, tenho saudades da menina em mim. Porque no sertão há uma felicidade que jamais mercado algum pode fingir vender. Eles vendem o sonho de ser linda, e com isso cremes, cosméticos, esmaltes, grifes. Mas a beleza mesmo, existe ou é de faz de conta? Existe ou parece assim porque assim já se convencionou? Enfim, os sonhos do mercado não chegam ao sertão. Tentam, mas não se instalam, porque coração de sertanejo não se convence facilmente.
Sertanejo luta pra sobreviver. Então, aprende a dar valor a cada instante de sua preciosa vida. Sertanejo não luta pra vestir a marca. Não pretende ser igual. Aliás, ele nem se dá conta de que é diferente. Porque tem mais o que fazer, entendem? Sertanejo admira a mulher. Qualquer uma. Se souber dançar forró, então! Pode ser baixa, alta, gorda, magra, cabelo liso ou encaracolado. Eu vi o mesmo homem numa festa dançar com todos os tipos de mulheres. Porque sertanejo não rotula como nós. Mulher tem que saber dançar, fazer carinho, dengo, cafuné. E sertaneja não se enxerga feia nunca. São cheias de vaidade. Não têm balança em casa, e a mesa é uma fartura. Comem feijão e farinha com o orgulho de quem colheu o que plantou. E recebem sempre com sorriso largo quem quer que chegue. Onde comem dez, comem vinte, trinta, quarenta... sertanejo é ilimitado na arte de recepcionar, acolher, abraçar. O que é aquilo, meu Deus? Parece que comungam do divino a cada expira e inspira.
Sertanejo não liga se você usa alpercatas ou salto alto. Mas adora andar descalço. Acho que é pelo prazer de sentir a terra. Sertanejo não tem vergonha das mãos calejadas, não fica feito bobo escondendo os dedos sujos de trabalho. Sem cerimônia, ele estende as mãos, porque aprendeu que era educação cumprimentar. Só que nem todo civilizado educado tem coragem de apertar uma mão suja de terra. Contraditório, não? Porque às mãos sujas de corrupção não faltam apertos. É engraçado como nos preocupamos em manter-nos limpos por fora! Sertanejo ouve poesia simples de cantador de viola, repentes que nascem de repente, no alvoroço das risadas, no calor das palmas. Sertanejo faz festa e coloca as mesas na calçada, que é pra convidar toda a vizinhança. E ainda avisa: pode chamar o amigo do amigo do amigo. Quanto mais gente, melhor! Mais animação! Mais felicidade! E o riso é real, não é ensaiado. Quando sertanejo dá tapinha nas costas, é porque gosta mesmo. Não é como aqui, em que muitos dos nossos se abraçam, para depois, por trás, alfinetarem-se. Sertanejo nem conhece falar da vida alheia com desdém. Sertanejo nem conhece gastar riso falso com quem não se afeiçoa. Essa coisa de sorrir enquanto o veneno escorre pelos cantos da boca não combina com o sertão.
Sertanejo está sempre de portas abertas. E qualquer tempo é hora de receber o vizinho para um cafezinho. Sertanejo coloca as cadeiras na calçada pra ver a noite chegar, e partilha o dia em longas conversas com os outros que sonham como ele. Sertanejo namora na janela. E ainda conserva o hábito de reparar que a lua é bela.
Sertanejo tem as cantadas mais puras do mundo, nascidas no cerne dos sentimentos mais nobres. Sertanejo convida a dama, por exemplo, pra matar muriçoca juntos. E isso é o mesmo que chamar pra dividir a vida. “Você não precisa mais se defender das muriçocas sozinha, eu ajudo.” E há brilho nos olhos ao dizer isso. Coisa que não exige a coleção de “eu te amo” que tantos gastam à toa. O “eu te amo” do sertanejo é dos gestos, do olhar, das mãos grossas que nunca cansam de afagar os cabelos. É coisa que realmente tem importância, então não carece de enfeitar muito. Basta viver. Aliás, como vive bem o sertanejo! De modo que eu me pergunto quem de fato é o homem bobo e explorado, o do sertão ou o da cidade? Porque sertanejo nenhum vive iludido correndo atrás do vento. De modo que eu também entendo as razões que fizeram com que o grande poeta Patativa do Assaré jamais abandonasse as raízes.
Filhos de sertanejo segredam as melhores brincadeiras, as mais ricas estripulias. Comem manga do pé, no tempo da colheita. E se lambuzam. Parece já nascerem sabendo nadar. Adoram brincadeiras de roda, e podem passar a noite cantando no alpendre. Os ouvidos estão sempre atentos para a mais nova história que o avô trouxe da roça. Filho de sertanejo aprende com o milharal que tudo tem seu tempo. Não adianta se apressar a colher o que não existe. Bem diferente de nossas crianças que querem sempre o último brinquedo lançado na TV. O problema é que as novidades são diárias, os filhos ansiosos, os pais apressados em satisfazer-lhes os sonhos. Já vi pai sofrer por não poder comprar imediatamente o que o filho pediu, como se um sonho grande pudesse se esgotar assim, na primeira tentativa. Filho de sertanejo conserva a velha boneca de pano por anos. Cuida como se fosse um ser vivo, porque aprende a dar valor a espera. Nossos filhos deixam brinquedos de lado com a agilidade do mercado de produzir outro sonho. Começam deixando brinquedos, quando crescerem, deixarão pessoas. Filho de sertanejo pede a bênção aos pais, aos avós, aos padrinhos, aos tios... diariamente e quantas vezes cruzarem com estes pelo caminho. Acho que as mães da cidade deveriam fazer estágio com as mães do sertão.
O sertão guarda o céu mais lindo para os olhos de qualquer pessoa, com estrelas tantas que seriam necessárias muitas vidas para contemplá-las.
O sertão guarda a melhor gente, o melhor amor e o melhor sonho.
O que faço aqui, então? Sonho com o tempo de ser escritora. De poder partilhar estes pensamentos tolos com mais de meia dúzia de amigos. De criar muitas peças de teatro e ver que o público se agradou, e ver sorriso nos olhos das pessoas. De levar os repentes do sertão para os palcos dos grandes teatros, pra todo mundo saber do encantamento da roça, da beleza da jurema. Sonho em colocar meu nome ao lado de uns tantos que fizeram e fazem a história literária do meu país. E este é o tipo de sonho que me exige a cidade, os teatros, os cinemas, as livrarias... Mas, sempre que vou ao sertão, volto com a pergunta: isso não é correr atrás do vento? Escritora eu já sou. Não é vaidade querer escrever para tantos? Por que não fazer teatro só para o sertão? Por que não lecionar numa escolinha pequena, na beira da estrada, para crianças que ainda conservam o hábito de levar uma rosa do jardim da mãe para a professora? Por quê? Afinal, há sentido em minha luta? Ou é uma das muitas irracionalidades desse tempo de mercado? Este sonho é mesmo meu, ou eu só queria um lugarzinho silencioso pra escrever?
Sei não. Quando volto do sertão, dentro de mim sobram pontos de interrogação. E o sonho de menina começa a pulsar novamente: uma casinha, uma rede na varanda, meu amorzinho do lado, e a felicidade. Precisamos mais do que isso? Quem se atreve a dizer que um sonho é pequeno sem antes perceber que por trás há um grande coração? Quem pode mesmo afirmar que a felicidade está aqui ou acolá? Quem domina mesmo uma verdade tão grande quanto o destino de uma pessoa? Quem?
Dentro da confusão de mim, eu só tenho uma certeza: quero a ousadia de aprender a ouvir a voz de Deus, de perceber o sutil e breve instante em que Ele fala ao meu coraçãozinho aflito. Quero só saber que Ele está comigo, e que vai encher minha alma com seu amor maior, pra eu aprender a ser gente. Quero só caminhar com Ele dentro, e assim tanto faz o que vier de fora, se ser estrela nos luminosos palcos da cidade ou observar estrelas do manto negro que cobre o sertão. Deitada numa redinha, numa casinha ao pé da serra, com meu amorzinho do lado e, certamente, muito feliz.
(Carol de Holanda)
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